VISITANTES

HORA DE PARTIR




Se o mar sagrasse o meu afogo,
Se gaivotas melodiassem à tarde
e o vento esculpisse o que leva,
Seria hoje o dia partir.

Uma partida breve e sonolenta,
Um entregar-se sem recompensa.
Seria hoje o dia de partir
se o mar aflito me assistisse.

Seria uma partida cândida,
Um acenar para um distante futuro,
Um acerto no alvo no escuro,
Um acorde que se estenderia pela manhã.

Se a lua banhasse o meu olhar,
Se o seu reflexo incidisse no mar,
O meu imergir seria despercebido.
O meu mergulho seria caudaloso.




CAFÉ LITERÁRIO DIA 24/11 NO CUCA


A MULHER NA NEBLINA


       Tinha começado a chover. As férias de Lauro em Petrópolis já eram uma realidade. Pensou que seria bom um clima de serra, um pouco de ar puro, ter contato com a natureza. Embora não fosse chegado a programas naturebas, às vezes sentia a necessidade de acordar com os pássaros cantando, ou até mesmo um galo. Na cidade onde morava só se ouvia buzinas histéricas, o barulho da estação de metrô e britadeiras às oito da manhã. Para Lauro, viver na cidade era bom, prático, mas às vezes sufocante. Tinha a impressão que a cidade sempre parecia correr contra o tempo, todos pareciam estar atrasados para alguma coisa, nada funcionava como o planejado. Era assim que via a cidade. Ela parecia ter vida própria. E uma metrópole como São Paulo, achava que era o tipo da cidade que tomava energético com café e até um pouco de Coca-Cola. Mas achava a cidade linda, vista de um certo prisma é claro. O caos de certa forma organizado, de certa forma impingido no senso coletivo.
            Ao chegar na serra, sentiu seu corpo diferente. Era o ar livre, que pra falar a verdade não estava tão acostumado assim. O vento era simplesmente diferente de qualquer outro, talvez não pra quem estivesse sempre passando pela ponte cidade/campo, mas sabia que pra quem quase nunca enchia seus pulmões de ar puro, a diferença era gritante. Sebastião, o seu melhor amigo, tinha emprestado a chave de sua casa para Lauro. Era belíssima. Era como um pedaço da cidade dentro do verde exuberante. Era uma casa moderna, com decoração classificada como clean, os móveis quase todos em tons de branco e paredes em tons pastéis. Era o lugar perfeito para passar as férias e pensar na vida. Sim, porque Lauro sabia que a sua vida não passava de um clichê, sem muitas aventuras, apenas trabalho e poucas novidades. Sempre teve aversão quando ao telefone algum amigo perguntava sobre as novidades. Não havia nenhuma, ou melhor, nunca houve, e talvez continue assim. Se perguntava por que na vida sempre temos que ter novidades? Será necessário uma coisa nova a cada dia? Preferia a mesmice do dia-a-dia e de vez em quando viajar a Petrópolis e tornar-se incomunicável.
            O caseiro veio recebê-lo e prontificou-se a apanhar as suas malas. Achou o senhor muito educado. Talvez assim fosse por recomendação de Sebastião, ou quem sabe ele era mesmo assim. O caseiro guiou Lauro até o quarto principal e no caminho contou umas histórias bem sem graça do Sebastião e de outros convidados que ali estiveram. Notou logo que ele não era nem um pouco ético, a discrição ali passava longe. Lauro limitava-se a soltar sorrisinhos amistosos. Depois de instalado pelo caseiro fofoqueiro e impertinente, foi até a janela para apreciar a vista. Era deslumbrante. Em frente à casa havia um pedaço de Mata Atlântica, dizia um pedaço mas para ele era gigantesca. Embora estivesse gostando de tudo, às vezes se sentia como um pássaro que viveu a vida inteira em uma gaiola sendo bombardeado por buzinas e poluição e que de repente tinha sido jogado no meio da floresta. Ao descer, a cozinheira anunciou que o jantar estava quase pronto, e se perguntou quem conseguia jantar antes do pôr-do-sol. Como se estivesse em um restaurante, a cozinheira disse que a entrada seria uma sopa de agrião e o prato principal seria massa a Putanesca. Apenas agradeceu e foi para a sala de estar, onde a lareira já estava acesa. Ela lhe perguntou se queria beber alguma coisa, Lauro disse que ela poderia ficar à vontade, ele mesmo se serviria se quisesse beber alguma coisa. Não sabia se tinha sido indelicado, mas ela consentiu com a cabeça e partiu para cozinha.
            Resolveu tomar um conhaque e fuçar um pouco a estante de livros do Sebastião. Sebastião era o tipo do leitor eclético, mas eclético mesmo, sua estante ia de Machado de Assis, passando por Danielle Steel, até chegar a um livrinho vagabundo de auto-ajuda. Caoui um livro de poesias de Pablo Neruda, era totalmente em espanhol, resolveu buscar algo mais nacional. Achou meio que escondido um livro de poesias de Manuel Bandeira, e antes de terminar o quinto poema a cozinheira veio anunciar o jantar. Comeu rapidamente a entrada e o prato principal enquanto o sol se punha, estava tudo muito agradável não fosse a cozinheira a invadir a sala de dois em dois minutos para perguntar se precisava de alguma coisa. Depois do jantar recolhido voltou para a sala e leu mais algumas poesias de Bandeira em frente à lareira se sentiu culpado por o sono chegar naquele momento. Não tinha jeito, a cama era a sua próxima parada. E assim obedeceu ao seu corpo.
            Dormia pesado, não tinha acordado de madrugada como de costume e só levantou ao sentir um vento frio que vinha da janela. Com a visão ainda turva olhou em direção à janela e ela estava aberta, o que achou bastante estranho já que dormira fechada. Lauro se perguntou se não teria sido o enxerido do caseiro, mas lembrou que tinha trancado a porta. O dia ainda estava amanhecendo e pouca luz invadia o quarto. Enrolou-se no lençol e levantou para fechar a janela. Havia muita neblina e fazia muito frio. Ao fechar a grande janela de vidro avistou uma moça, trajava um vestido branco e longo, como de noiva, e embrenhava-se na mata e na neblina. Era uma cena peculiar e se perguntou o que uma mulher fazia àquela hora no meio da neblina e da mata vestida daquele jeito. Lauro não conteve a própria curiosidade e saiu correndo pela casa enrolado no lençol. Desceu as escadas em disparada e destrancou a porta e deu de cara com o vento gélido. Encolheu os ombros e olhou ao redor e não viu nada. Observou melhor e viu algo branco entrando na floresta em frente à casa. Lauro correu ainda enrolado com o lençol e só se desvencilhou dele ao entrar na floresta.
            A neblina estava muito forte, a floresta tinha um quê de sombria. Olhava ao redor para tentar ver alguma coisa. Deu as costas para voltar e ouviu um canto. Era como uma canção de ninar entoada por uma mulher com uma voz agradável. Voltou-se para dentro da floresta novamente e a viu passar. Tinha os cabelos muito negros, a pele muito branca e trajava um vestido de noiva. O canto era hipnotizante e lhe causava uma boa sensação. Sentiu-se atraído por aquela voz, queria segui-la e assim o fez. Apertou o passo em direção à mulher, e quanto mais rápido andava, sentia estar mais distante, como se fosse impossível alcançá-la. Segui-a incansavelmente e percebeu que agora conseguia aproximar-se dela. A mulher caminhava calmamente, sem pressa, parecia estar muito à vontade. Com medo de assustá-la, Lauro aproximou-se devagar e sem perceber pisou em graveto. O canto da mulher cessou de imediato, mas ela não se virou. Ainda na dúvida, Lauro não ousou tocá-la ou falar nada, ficaram em silêncio, ela de costas para ele por alguns segundos. Estava encantado e queria ver o rosto daquela misteriosa mulher que caminhava àquela hora no meio da neblina.
            Hesitante, Lauro tocou-lhe o ombro e lentamente a mulher foi virando. Os olhos de Lauro ansiavam por ver o rosto dela. Ficaram cara a cara. A mulher tinha olhos verdes e profundos. Eram de um verde escuro. Tinham um magnetismo que prendiam o olhar de Lauro. Antes dele proferir qualquer palavra, sentiu uma forte dor na nuca, sentiu seu corpo enfraquecer e viu a mulher sorrir. Lauro ajoelhou-se em frente à mulher, estava confuso e fraco, não tinha forças nem para pedir socorro. A voz não saía, o ar não enchia os seus pulmões e se sentia sufocado. A mulher ajoelhou-se à sua frente e ainda sorria. Ela tocou o seu rosto, tinha a pele gélida, porém macia. Ela acariciou todo o rosto de Lauro como se o conhecesse há muito tempo. Lauro enfraquecia cada vez mais, a sua visão foi ficando embaçada, não sabia se era a neblina ou a falta de ar. Embora estivesse sufocando, não conseguiu deixar de olhar para os olhos daquela mulher. Eram os olhos verdes mais lindos que já vira. Seu corpo foi enfraquecendo cada vez mais, a sua visão se perdia a cada segundo. E de repente tudo ficou branco.  

HOLOCÁUSTICO AMOR (Wilson Macêdo Jr.)





























Segredos ditos são espelhos partidos.
E o meu olhar que se dispersa na manhã,
Dissolve a força que o meu segredo aplaudia.

É abjeto o meu espelho pois é coberto por medo.
Meus incautos gestos prontos me denunciaram.
E na formal manhã descobriste o que me encapelava.

Amor com gosto de soda cáustica,
Desenhos, canções, versos e rima.
Holocausto disfarçado de expectativas. 

O ADMIRADOR (Wilson Macêdo)













O carteiro tocou a campainha três vezes. Como era de costume, a mulher foi atender à porta às pressas, e como de hábito agradeceu e fechou a porta rapidamente. Pulou no sofá como uma adolescente que recebe uma carta de amor. Não era adolescente, mas com certeza o que tinha em mãos era mais uma carta de seu admirador secreto. O riso no rosto era incontrolável, a ansiedade para ler aquelas linhas também. Já era de praxe nas terças-feiras, seu dia de folga no trabalho, receber os mimos do seu admirador. Ao mesmo tempo em que se deliciava com aquela situação, também ficava um pouco assustada, pois, deveria ser alguém que conhecesse muito bem a sua rotina de trabalho. E perguntava a si mesma se seria possível ser alguém do trabalho, nada poderia fazer mais sentido. Percebia que o seu vizinho de cubículo naquela gigantesca empresa de telemarketing agia de modo estranho, buscando sempre desculpas para presenteá-la com pequenos mimos. Daí vinha logo em sua cabeça a imagem de uma pessoa mais fechada, o seu colega de trabalho embora lhe levantasse algumas suspeitas não parecia ser do tipo que admirava secretamente uma mulher. Tirou as idéias da cabeça e se concentrou na carta, não era muito extensa, era concisa, mas forte o suficiente para deixá-la tocada.
            Na manhã seguinte realizou toda a sua rotina matinal e partiu para o trabalho, ou melhor, partiu à caça do tal admirador, e rezou para que fosse de lá, e talvez tenha até rezado para ser o seu galante vizinho de cubículo. Agiu de maneira natural e pensou em uma forma de descobrir e pensou que pela letra não seria possível, o seu admirador era muito astuto e não escrevia as cartas de próprio punho. Mas agora que tinha a hipótese de ser alguém do escritório, resolveu prestar mais atenção ao comportamento de todos. Entre uma ligação e outra, lembrou que os admiradores geralmente gostam de presenciar as entregas, então pensou que talvez não fosse alguém dali, mas enfim, não conhecia tudo sobre amores secretos e platônicos e continuou em sua aposta. Na pausa para o cafezinho acompanhou o seu vizinho de cubículo, faria algumas perguntas discretamente, para não assustá-lo.
            - Aconteceu alguma coisa?
            - Mais ou menos. Eu meio que estou sendo admirada secretamente. – nenhuma reação estranha.
            - Ora, ora... e você desconfia de alguém?
Pensou por dois segundos.
            - Não – o “não” foi quase que automático – você desconfia de alguém? – achou que tinha ido longe demais com essa pergunta.
            - Não – esse “não” saiu mais reflexivo – mas poderia ser uma porrada de caras.
            - Bom saber. – “uma porrada de caras”. Achou que essa frase fora do tipo: “Quem não se apaixonaria por você?”, não sabia se ficava lisonjeada ou preocupada, já que poderia ser “uma porrada de caras”, sua busca seria mais difícil. Pensou que seria mais fácil se ele dissesse “sim, sou eu”. Mas o que veio a seguir depois da infame frase “mas poderia ser uma porrada de caras”, chamou a sua atenção. Um olhar. Três segundos. Disse muita coisa, ela já esperava pela revelação.
            - Nem olhe para mim.
            E ele estendeu a mão direita. Indagou-se como nunca tinha reparado naquela enorme aliança de noivado. Era noivo. Não era ele. E durante o dia sentiu-se decepcionada, como se estivesse procurando algo que sabia que não ia encontrar. Sentiu que talvez fosse hora de jogar fora todas aquelas cartas, esquecer o assunto de uma vez, e pedir ao carteiro que ignorasse aquelas correspondências, não sabia se isso seria possível, mas tentaria assim mesmo.
            Ao chegar em casa, a primeira coisa que fez foi avançar sobre o envelope grande com todas aquelas cartas, e fazer uma grande fogueira dentro de um balde. Jogava uma por uma e assistia aquela cremação de palavras doces e frases feitas. E no ato de queimar, foi percebendo a ausência de selos. Aquelas cartas não possuíam selos, não tinham sido postadas nos correios. E como se seu cérebro trabalhasse feito uma engrenagem, juntou as duas coisas. As cartas não eram postadas, eram entregues pelo carteiro, que sabia toda a sua rotina, sabia que apanharia pessoalmente as correspondências às terças-feiras. Viu que tudo fazia sentido. Decidiu dar um ponto final naquela situação. E passada mais uma semana, cumprira o que prometera a si mesma. Ao soar a campainha, todo seu corpo respondeu de forma segura, seus passos pareciam mais firmes do que nunca, como alguém que caminha por um caminho conhecido. Não hesitou ao abrir a porta, agiu de forma natural. Quando o carteiro lhe entregou a correspondência, pediu que esperasse, fuçou o maço de envelopes, achou a carta do seu admirador e a devolveu.
            - Não sei se é possível, ou se faz parte do seu trabalho, mas por favor, ignore essas cartas.
            Calou-se por segundos o carteiro.
            - Tudo bem.
            O carteiro saiu do prédio e ao bater a porta às suas costas, ouviu o assovio já conhecido. O homem se aproximou. Parecia ansioso.
            - Como ela agiu? – perguntou o homem.
            - Pediu que eu ignorasse suas cartas.
            O homem pareceu decepcionado.
            - Escuta o que eu digo. Você trabalha ao lado dela o dia todo e todo dia. Talvez se ela soubesse que é você...
            - É melhor esquecer essa história meu amigo.
            Despediram-se. E ao olhar para cima do prédio, em direção à janela do apartamento de Alice, o que Walter viu foi um sorriso de quem assistira toda a cena. Tinham sido pegos em flagrante: O carteiro e o admirador.

BORDEL DE PALAVRAS (Wilson Macêdo)



Elas se abrem como botões de rosa,
Transpiram na manhã e exalam um odor fresco,
Tão frenético quanto o sol.
Estão no bolso, na lixeira, no papel,
Incendeiam-se, ardem-se e se desmancham.

Degusto-as todas e sei seus sabores.
Levo-as pra cama, pro carro, qualquer canto
onde possa eu desfrutar seus olores.
Não são flores, são negros vestígios
Dos meus prosaicos versos de outrora.

Uso-as ao meu favor e quase as maltrato,
Sempre percebo que elas se arrastam,
Imploram por mim e prontas me esperam.
Não há muito o que fazer, entrego-me a elas todas,
E nunca espero para ver o nascer do sol.

Mas quando se põem a fugir de mim,
Sinto que o vício é mais que ácido,
Que o leite vertido por elas é sulfúrico,
E sorvo o seu leite enquanto me enveneno.
E lembro-me que o inferno cheira a enxofre.

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A MOÇA E A BAILARINA (Wilson Macêdo)






Entre mim e ela há o meio-dia.
Há o medo fulgurante, fulminante,
Há dúvida, cruz, espada e esplendor.
De mim para ela há um negro clamor.

Entre mim e ela há um vago espaço de dor.
Há um silêncio que me ensurdece,
Uma seta que aponta para o tépido mar,
Onde uma onda se quebra e reflete seu rosto.

Entre meu sonho e os dela não há nada.
Em alva névoa me exilam
num mar de afogos e suspiros,
Num acordar sem acordo vital.

Mas entre mim e ela ainda há o meio-dia.
Há um recado que espatifou-se no vento,
Há mil gracejos despojados no tempo,
Não há nada do que pensei que haveria.

Mas se o que houvesse entre mim e ela
fosse reciprocidade assim evidente,
Nem o pesar de mil correntes
Fariam de mim um romanceiro da morte.

Mas disparatados são meus gestos.
Um palhaço de máscara disforme
é o que vejo no torpe espelho,
Enquanto a bailarina dança leve.

E ao som inebriante da caixinha,
A dança daquela imortal bailarina
Remete-me aos gestos da moça graciosa.
Então fecho a tampa. É o fim da vida.

NA AREIA (Wilson Macêdo Jr.)




Os raios do sol me açoitam com farpas ultravioletas.
Meu corpo inerte toma de um gole de cansaço e tomba,
E se perde na cândida praia sem cão nadador e atleta.

Como se eu fosse parte da areia e sua essência,
Formigam minhas vísceras que agora parecem externas,
A praia transfigura-se em cinza e agora quem castiga é a chuva.

Nesse misto de areia e água forma-se lama de desespero,
Uma argamassa amarga e pronta para edificar o meu corpo.
E deixo que na próxima onda o que restou
se esvaia a galope torpe fora de mim.

Hipnose,
Sonolência,
Letargia.
Sinônimos do meu fim.

O CÃO DA MADRUGADA (Wilson Macêdo Jr.)




Um cão correu e seu rastro iluminou a madrugada.
Não sei se era cão vadio ou de pura raça.

O mesmo cão me olhou e parecia estar atrapalhado.
Não ousei perguntar se tinha dono ou se era alforriado.

Ao primeiro passo dado em sua direção, moveu-se pra trás.
Não insisti em manter contato, preferi contemplá-lo mais.

Estiquei minha mão no impulso de levemente tocá-lo.
O cão mostrou os dentes e postou-se ligeiramente desconfiado.

Senti no seu o olhar que tínhamos algo em comum então.
Éramos dois espectros presos na madrugada e soltos na solidão.

Finquei um joelho no chão para ficar à sua altura.
O cão deu um passo atrás e na sombra escondeu sua figura.

Um assovio me pareceu não mais que um ato prudente.
Não sei o que o cão sentiu, mas aproximou-se ternamente.

Mantinha o seu olhar fixo no temeroso olhar meu.
Cautelosamente minha mão pelo seu pêlo correu.

O cão deitou-se e agora parecia menos ameaçador.
Mesmo na madrugada fria minha mão compartilhou o calor.

Sorri e ficamos em uníssono naquele eterno minuto.
Meu toque para aquele cão não se caracterizava mais insulto.

Levantei-me, olhei o cão pela última vez, e na madrugada parti.
Decidi não olhar pra trás, e assim sem pensar apenas segui.

Ao meu lado o animal balançava o rabo e seguia em sua passada.
Éramos dois. Eu e o cão, perdidos e sós na fria madrugada.

ALÉM DO FIRMAMENTO (Wilson Macêdo Jr.)




Surgiram cinco estrelas quando o céu estava nublado.
O meu cenho franziu curioso a tal caso antes pra mim raro.
E como se a natureza assim desafiasse o meu estranhamento,
Mais cinco pontos brilhantes estamparam a noite acabrunhada.

Na minha ciência particular tal fato era impensável.
De acordo com minha firme certeza era mau pressentimento.
Mas meus olhos se encantaram com o simples fato
De uma estrela brilhar numa noite nublada além do firmamento.

A SEREIA (Wilson Macêdo Jr.)


Conto gotas de uma chuva ácida
que fere o chão e liquida pássaros.
Meu corpo não resiste a tal banho
e em um milhão de canções me desfaço.

Talvez o que saia do mar seja uma sereia
para acariciar o meu corpo naufragante.
E no mesmo banho há um beijo marítimo
compartilhado pela sereia que sorri e canta.

Deixo que ela me guie pelas ondas espumantes,
Deixo que ela abra as trilhas secretas e salinas,
Recorro ao desejo de tornar-me cara pérola,
Deixo que a sereia me envolva em folclore e morte.

PICADEIRO (Wilson Macêdo Jr.)





Nos despojos de um dia famigerado,
Chamam-no de acabrunhado palhaço,
Que louco esqueceu-se de sorrir.

Como a máscara poderia ser verdadeira,
Se o palhaço ao olhar para o centro da platéia,
Não vê a face da chance última e derradeira?

E ao pisar na irrealidade daquele espelho,
A máscara cai e uma lágrima fere o picadeiro.
Assim o palhaço segue triste, e mancha a maquiagem.

CALAMIDADE (Wilson Macêdo Jr.)





A minha retina espanta-se ao cabo do dia.
Os espectros de um pôr-dAdicionar vídeoo-sol calado,
Ensurdecem, enlouquecem os velozes pássaros,
E a mim também retardam o raciocínio.

Não tenho asas, de fato sei que não passo
de um calado fantasma sem correntes aos pés,
Um cão sem presas solto no meio do quintal,
Um livre animal, mas preso pelo marasmo.

Sou eu, uma águia muda no fim da tarde,
Um falcão sem garras sobre a presa,
Um leão sem patas, em maio na savana,
Sou eu, alguém sozinho na calamidade.

VERDE-MAR (Wilson Macêdo Jr.)




Eram verde-mar.
E eram esmeraldas, lagos oculares.
Profusas pupilas,
Eram mananciais de clorofila.

E na silhueta do dia primeiro,
As minhas pupilas confusas,
Tentavam desvendar a esmo,
As armadilhas de tal olhar difuso.

Eram verde-mar.
E eram cintilantes, cor de cana.
Lustres de esmeralda e esmero.
Verdes-mar assim eram.

Prisioneiro de imediata sentença,
Escapou-me a voz e o protesto.
Assistia ela em camarote de diamantes,
A minha queda em terra gasta e deserta.

Eram verde-mar.
E tinham a cor das matas imaculadas.
Lânguido olhar distante,
Era o dela que a manhã mostrava.

E na silhueta do dia segundo,
Buscava ávido o meu olhar
Aquele verdor taciturno.
E assim que os viram,
Em um verde límpido se refletiram,
E em um segundo se perderam.

E na silhueta do dia terceiro,
À vontade os olhos se falavam,
Às escondidas se fitavam.
Estavam meus olhos sem rumo.

E no fim do dia terceiro,
Na hora do adeus oculto se calaram.
E no verde-mar dos olhos dela,
Os meus tão singelos se afogaram.

QUARTO SEM JANELAS (Wilson Macêdo Jr.)




Apenas ouço o silêncio que corta a porta.
De guarda estão meus velhos paletós,
Que agora cheiram a antigamente.

Como uma névoa que me arrepia a espinha,
O silêncio vem perturbar uma paz que não tenho.
Agora há cantos proferidos por grilos inquietos.

Tenho os braços cruzados e toco minhas costelas.
Estou em vestes alvas, seguras, paredes acolchoadas,
Não há janelas. Ainda bem! A loucura não pode entrar.

O RETORNO DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)





Hênio presenciou o sol deitar-se no horizonte e encher a sala de um tom alaranjado. Permanecia sentado sobre o piano a contemplar o céu que parecia sangrar, como se aquela paisagem tomasse as dores do seu coração e por compadecimento sagrasse o fim da tarde. Contemplava a morte diária do sol sem subverter o seu propósito. Não derramaria mais nem uma lágrima por Cristina, não por ela, nem tão pouco por mais ninguém. A roupa era a mesma de vinte e quatro horas atrás, o cheiro de álcool no tapete já se tornava insuportável, o álcool de meia garrafa de wisky desperdiçada por Cristina. O céu alaranjado não anunciava chuva, não anunciava nada, era como uma pintura que Hênio gostaria de apreciar para sempre, como uma tela de Monet que ganhava vida.
Deslizou do piano e seus pés tocaram o chão, sentiu-os dormente, passou a mão entre os cabelos e olhou ao redor da sala como se analisasse os estragos que agora nem pareciam tantos e graves. O tapete já não estava encharcado, apenas úmido e pegajoso, o que lhe causava certa repulsa. Repulsa pelo ato impensado que cometera, por ter estragado meia garrafa de wisky, ensopado o tapete e posto em risco o seu piano. E tudo por Cristina, que à essa hora estaria às gargalhadas por ele mesmo ter feito o serviço sujo: acabar com o relacionamento. “A culpa foi toda sua!”. Claro, o que mais Cristina poderia dizer? Apenas acusá-lo, pôr uma faca em seu pescoço até ele confessar que tudo era culpa dele, que ele não a amava mais e assim inverter a situação. Cristina era maquiavélica, astuta, sabia como inverter tudo e tirar a culpa dos próprios ombros. “Eu disse que te amava!”. Seria uma outra arma que usaria, o esquecimento patológico de Hênio. Boa saída. E como se revisitasse Dom Casmurro, sentiu em Cristina uma ponta de Capitu, uma leve dissimulação, mas sem olhos de ressaca, apenas um vazio, um olhar ofídico. Serpente de pedigree humano, uma criatura híbrida, meio humana, meio não se sabe o quê. Talvez fosse extraterrena, ou até um cyborg. Hênio chegou a rir de todos esses pensamentos infundados, mas com uma ponta de realidade. Cristina. Um ser misterioso e encantador. Há vinte e quatro horas atrás Hênio teria tantos adjetivos para nominá-la que mal caberiam em um romance. Agora o adjetivo caberia em apenas um rabisco na areia. Misteriosa.
Jogou seu corpo no sofá, afundou-se na maciez do estofado e sorriu. E como numa resposta involuntária, seu corpo desobedecia às ordens previamente estabelecidas e seus olhos foram umedecendo, uma resposta imediata. Chorou. Pensava tudo aquilo de Cristina, mas na primeira lágrima vertida viu que não podia viver sem ela, sem aquele olhar meio Capitu, meio cobra coral. Amava aqueles olhos sem vida, a rispidez característica da sua fala. Amava o seu sorriso acima de tudo. De cabeça baixa assistia suas lágrimas gotejarem em sua roupa e levar ao chão a idéia, que agora parecia estúpida, de abandonar Cristina e dizer a adeus a todos os seus defeitos. O choro veio num crescente, agora era tarde, chorava por ela novamente. Decidiu que nada acabaria ali, não deixaria Cristina escapar pelos seus dedos e partir para sempre. E como se o sol se compadecesse de sua dor, pareceu ficar imóvel. A sala continuava alaranjada. O sol iria esperar por aquele desfecho a la Casablanca, a la Bougart e Bergman.
Hênio pulou do sofá, pegou suas chaves e partiu para o carro. Saiu em disparada dirigindo incautamente, não respeitou semáforos, não respeitou velocidade, só queria encontrar Cristina novamente. Estava cego e em alta velocidade, não queria perder o pôr-do-sol, queria contemplá-lo ao lado de sua Capitu, de sua imperfeita Julieta. As coisas passavam por ele tão rapidamente que mais pareciam vertigens, era um homem desesperado. Estacionou em frente ao prédio onde Cristina morava e apertou o interfone milhares de vezes. Pensou que talvez ela não quisesse vê-lo nunca mais, e talvez não estivesse de todo errada. Sem resposta. Até o sol parecia desistir daquela cruzada romântica, daquele último ato de desespero e parecia voltar a morrer. Hênio olhou para o mar que ficava em frente ao prédio de Cristina, o sol começava a perder suas forças e ele atravessou a avenida em direção à praia. Sentou-se na areia e ficou ali. Olhou para trás na esperança de ver Cristina na sacada do apartamento. Não havia nada. Com as pernas encolhidas e presas pelos braços Hênio abaixou a cabeça, pois não queria ver o sol desistir de tudo também. Seu pensamento estava longe, estava em busca de Cristina. Sentiu uma mão tocar o seu ombro e aquele toque não era desconhecido. Aquele perfume adocicado que sempre fez parte de sua vida lhe devolveu a consciência e levantou a cabeça. Ao seu lado estava ela, Cristina, bela como sempre, com o sorriso de sempre, ajoelhada ao seu lado. Não disseram nada, apenas beijaram-se dando uma trégua ao sol que já não podia mais esperar por aquele momento.
O mais improvável tinha acontecido, Hênio viu brotar do silêncio lágrimas nos olhos de Cristina e as enxugou com um sorriso no rosto. Hênio trouxe o corpo de Cristina para junto do seu e ficaram lado a lado, olhando para o horizonte assistindo ao adormecer do sol. Hênio fincou o dedo indicador na areia e ali escreveu a palavra “misteriosa”. E o sol se pôs.

A PRESENÇA DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)




A chave girou na porta. A luz do sol nascente invadiu a sala. Cristina bateu a porta na esperança que Hênio aparecesse. Ficou impaciente, balançava a chave na mão e resolveu avançar pela sala adentro. Olhou para o lado direito, a cena era paralisante. O tapete e o chão da sala estavam encharcados, o piano, que ainda pingava água, estava próximo à janela, e por fim aquele corpo adormecido em cima da tampa, igualmente encharcado. Cristina apertou o passo até Hênio e o observou estupefata. Hênio dormia. Teve a confirmação ao notar a sua respiração que movimentava o tórax para dentro e para fora.
- Hênio?
Cristina balançou o corpo de Hênio. Ele se mexeu, ela sentiu um alívio e resmungou alguma coisa tão baixo que talvez nem ela pudesse entender. Vendo que Hênio acordava, Cristina largou a bolsa em cima do sofá e começou a apanhar a garrafa de wisky que estava virada. A água misturada à bebida deixava um odor estranho no tapete. Apanhou o copo e foi para a cozinha. Jogou a garrafa vazia no lixo e pôs o copo dentro da pia. Hênio esfregava os olhos, parecia atordoado, olhou tudo ao redor e pensou que a voz que ouvira fora de um sonho. E como um milagre Cristina materializou-se na sala. Hênio esfregou os olhos mais uma vez para ter certeza de que não era uma miragem. Cristina foi até o sofá onde se encontrava a sua bolsa e lá dentro apanhou um batom e começou a passar nos lábios.
- Uma garrafa inteira?
- Meia.
Ela fechou o batom e colocou de volta na bolsa.
- Então a outra metade encharcou o tapete. Foi um presente meu.
- Eu sinto muito.
- Eu não pude vir.
- Eu percebi.
- Tive uma reunião de última hora e...
- Você não precisa se explicar Cristina.
Hênio se sentia ultrajado com aquela conversa de “reunião de última hora”. Um telefonema teria sido o bastante para Hênio se conformar.
- Às vezes eu fico achando que você pensa que eu não estou nem aí pra você...
- E está?
- É tudo muito complicado.
Hênio sorriu. “Complicado”, a palavra preferida de Cristina. Ou melhor, gostava dessa palavra no infinitivo: complicar.
- Você não vai descer desse piano? Aliás, eu não acredito que você abriu a janela para molhar o piano, a sala e até você. Vai acabar resfriado.
Era esse tipo de comentário feito por Cristina que deixava Hênio com vontade de explodir. “Vai acabar resfriado”, como se ela se importasse se ele pegasse um resfriado, uma tuberculose ou fosse lá que doença fosse.
- Eu estou bem aqui.
- É melhor você tirar essa roupa se não...
- Para com isso! Para de fingir que se preocupa comigo! É isso que me irrita em você, essa sua mania de fingir que se preocupa comigo!
- Você ainda está bêbado...
- Talvez!
- Vai dizer o quê? Que é culpa minha se você encheu a cara com meia garrafa de wisky? Ou se um dia essa merda de piano apodrecer por causa da chuva que você deixou entrar?! É isso que me irrita em você Hênio, parece que você vive em uma peça de tragédia grega!
Cristina levantou-se do sofá e apanhou a bolsa. Hênio pulou do piano e a agarrou pelos pulsos.
- Você não entende não é?
- O quê?! O que é que eu não entendo?!
- Esquece. Se você ainda não leu nos meus olhos, nos meus gestos... então você é mesmo como eu pensei que fosse.
- O que você pensou que eu fosse? Fala Hênio!
- Essa pessoa seca. Árida. Vai embora Cristina.
- Você está mandando eu ir embora Hênio?
Hênio pensou por três segundos.
- Estou. O que você espera? Que eu faça uma cena de tragédia grega? Não dessa vez. Eu amo você, não resta dúvidas. Agora vai embora.
Cristina deu as costas. Ao ouvir a batida da porta Hênio fechou os olhos. Sentia alívio, sentia medo. Cristina era tudo que lhe importava nesse mundo, mas não estava mais disposto a se humilhar, a ser rejeitado. Se tinha sido muito duro agora não valia à pena pensar naquilo. Sentia tanto amor por Cristina que lhe doía o corpo todo, doía falar com ela naquele tom, daquela maneira. Não era do seu feitio agir daquela forma, mas algo dentro dele falou mais alto naqueles minutos de discussão. Cristina partira, e se perguntou o que mudaria dali pra frente. Voltou para cima do piano e sentou-se. E decidiu ficar ali até o pôr do sol.

VÔO ESBRASEADO (Wilson Macêdo Jr.)




Minha amarga sorte me jogou aos leões.
A noite tragou minhas forças e meu segredo,
Doce amada na chuva conheceu meu medo.
Em tal momento eu me afogava em ilusões.

Nem estrelas, nem lua para ali decifrar,
As coisas acanhadas que eram proferidas.
Aquelas trêmulas palavras tão sofridas,
Minha boca sem juízo estava a libertar.

Doce é a morte da esperança que não nasceu,
Livre é aquele que de amor nunca se perdeu,
Liberto é esse tonto poeta que rima.

Bato as asas em vôo solitário e perdido.
Correm essas horas do meu tempo esquecido,
E esbraseiam meu coração que feneceu.

A AUSÊNCIA DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)




Descansou o copo de wisky na mesa. Olhou para a garrafa e ela já ia pela metade. Hênio chegou a pensar que era tempo perdido, que mais uma vez tinha caído na armadilha de Cristina. “Vou lhe visitar”. Como se fosse verdade. Mas algo desesperador dentro de Hênio dizia que dessa vez podia ser verdade. Meia garrafa. Era um mau sinal. A partir dali o malte desceria goela abaixo como um veneno, era puro malte, era puro veneno. O gelo já se tornava dispensável, ia encarar a espera no seco, com o wisky puro e consolador. Sentia-se ridículo e bêbado, esperando que ao menos o telefone tocasse, que Cristina desse nem que fosse uma desculpa pra lá de esfarrapada. “Você não sabe o que aconteceu”. Não lhe importava o que tinha acontecido. Ela simplesmente não estava ali. E começou a pensar que se ela chegasse naquele exato momento, veria uma cena deplorável, um homem só, com uma garrafa de wisky pela metade, vertendo a primeira lágrima.
Cristina era do tipo que fazia cem promessas e cumpria dez. Dez por cento do que prometia era verdade, e era nessa porcentagem que Hênio se agarrava. Despejou mais uma dose no copo, uma dose generosa, a partir dali não ia mais responder por si. A bebida desceu fervendo, não sabia se era mesmo o wisky ou o ódio que o temperava. “Você anda bebendo demais”. Ela tecia esse tipo de comentário, talvez a fim de feri-lo, de expor o seu ponto fraco. Hênio bateu o copo na mesa de vidro ecoando por toda a sala e levantou-se. Foi até a janela. Nenhum carro que passava ali se parecia com o de Cristina, e quando parecia, sentia sua respiração cessar por alguns segundos. Sentiu-se como um tolo, um amante de primeira viagem, que mal conseguia controlar a sua respiração.
Quando o telefone tocou, o som reverberou muito além da sala, sentiu o seu íntimo vibrar e o impulsionar até o aparelho em uma corrida angustiante. Silêncio. Hênio imaginou que do outro lado da linha estaria Cristina pensando em alguma coisa para dizer, como se estivesse sem coragem. Mas não. Era mesmo silêncio. Não era ninguém. Caminhou até a janela novamente. Cada farol que surgia no fim da rua, Hênio sentia o seu corpo se encher de esperança. “Ela não vem”. Pensava ele com o copo que quase se espatifava na mão pelo ódio que sentia. O seu copo estava vazio e resolveu caminhar até mesa e pôr mais uma dose. Engoliu de uma só vez e sentiu seu corpo aquecer. Olhou para o canto da sala e lá estava o piano preto descansando. “Você toca muito bem”. O comentário de Cristina não passava disso. Tinha a mania de ser monossilábica em tudo. Menos na hora de repreendê-lo. Resolveu esquecer o piano por um tempo e foi para a janela novamente. Olhava fixo para o fim da rua, como um cãozinho que espera o seu dono chegar em casa.
Uma gota de chuva bateu na janela e lhe distraiu. Pensou que se vinha chuva, era mais que certo a ausência de Cristina. E os pingos foram aumentando, engrossando cada vez mais e molhando por completo a janela. Ainda com o copo na mão, apressou o passo até o piano e numa força descomunal o arrastou para próximo da janela. O piano brilhava e tinha aroma de óleo de madeira. Hênio abriu a janela e deixou a chuva entrar. Os pingos encharcavam a madeira do instrumento. Ele levantou a tampa que cobria o teclado e executou uma música triste. O vento que trazia os pingos de chuva molhava o piano, o seu rosto e seu corpo por inteiro. Hênio executava a música enquanto a água escorria pelo seu rosto e pelo piano. Tocava com segurança e raiva, estava pondo o seu ódio nas teclas do instrumento. Hênio parou de tocar e subiu no piano e deitou-se de barriga para cima. Abriu os braços, tomou chuva pesada e sorriu. Os pingos espessos castigavam o seu rosto, ensopava a sua roupa, destruía o instrumento. E foi pensando em Cristina e na sua ausência que Hênio adormeceu na chuva, no piano. Eram um só. E enquanto a água escorria pela sala, Hênio dormiu e esperou nunca mais acordar.

AO ÓDIO COM CARINHO (Wilson Macêdo Jr.)




Sinto ódio agora, sempre, aqui, ali, eternamente.
Encarno sua repugnância em sol, chuva, baile, velório.
Amo odiar a vida que me despreza e aqueles que
Num sorriso de escárnio me jogam num abismo tão árido.
Verto lágrimas de ódio na noite que se faz em descaso,
Atropelo-me em palavras lançadas ao breu da arena chuvosa.

O que corre em minhas veias já se torna órgão vital.
E o ódio encontra seu lar: o meu coração.

Trago a lancinante frustração dos perdidos de amor.
Faço jus ao ódio e tomo as suas dores em mundo venturoso,
Faço frente à batalha dos que querem cedo sucumbir,
Passo a passo no caminho da crucificação por odiar tanto.
Despejo na vala urbana a última lágrima que mereces,
Antes de amar-te pelo resto de minha vida odiosa.

Bebo em um cálice cravejado de incerteza e medo.
E o ódio respira em seu lar: o meu desespero.

Os sarcásticos se realizam,
Os perfeitos não entendem,
Os amáveis compreendem,
Mas não dizem o porquê.

Se soubesse, criaria eu uma ode envenenada,
Edificaria um altar onde o ódio reverenciado seria,
Cantaria a plenos pulmões uma canção ao odiar.
Mas prendo-me a versos tão cautelosos e sem vida,
A rimas tão pobres como a luz que intoxica o dia,
A formas tão insossas como a luz do luar.

Minha desesperança ilumina os séculos e as vias sem saída.
E o doce ódio descansa em seu lar: a minha vida.

21 DE MAIO (Wilson Macêdo Jr.)


Meu corpo não soube responder à altura.
Ao teu piscar, como um não que diz sim,
No ar chuvoso sentia-se o começo do fim,
Como se o chão ali faltasse, veio tontura.
O amor era explícito, mas não transbordava.
Uma película em forma de angústia se estendia,
Na minha voz o último sopro de sanidade existia,
O silêncio em seu sono absoluto de leve sonhava.

Vi tua boca formar um sorriso de condolência,
Vi tua mão tremer em gesto de impaciência,
Nos teus olhos de tons claros senti repugnância.
Devia ter visto nos olhos meus a desesperança.
Teu súbito não, frio e afiado como uma lança,
Cortava-me enquanto no chão gotejavam lágrimas.

SILÊNCIO DECLARADO (Wilson Macêdo Jr.)




Minhas retinas fatigadas de tanta contemplação,
Perdem a luminosidade de uma era romanesca.
De tanto te olhar em ato impensado de veneração,
Vai-se o amor, o que fica é ladainha pitoresca.
Canto, canto e o fato é que não me esqueço.
Fere a ferina palavra escoada na rua perdida,
Sangra o segredo que corre na mente aturdida,
E quanto à insanidade, finjo que não a mereço.

No livre e obsessivo ato de em ti pensar,
Perco-me em palavras de almas acorrentadas,
Escondo-me sob o fato de oculto amar.
Mas é o fim da tarde com lua anunciada.
Espero ver nos teus olhos um lindo acenar,
Para a minha declaração de amor silenciada.

POEMA CANIBAL (Wilson Macêdo Jr.)

Tenho dentes rítmicos
e uma língua frenética
que saboreia a doce forma.

Devoro os versos imaturos,
As rimas mal acabadas,
Os afogos e as lástimas.

Tenho segurança, firmeza. Sou brasa
que queima e pulveriza em segundos,
O poema que docemente se acaba.

CATARINA (Wilson Macêdo Jr.)

Para Catarina Macêdo



PARABÉNS PELOS SEUS 4 ANOS!



Catarina menina da lua e do sol.
De rapina, de repente, o sol em
graça te ilumina, tão só Catarina.
Abre os olhos, abre as asas,
de relance torna-te sina
de filha que não és minha. Jamais.

Ouve, Catarina menina, os ponteiros
do meu relógio. Não giram.
E que horas são? Quanto tempo faz?
Ouves meu grito daqui a chamar-te
em ladainha? "Filha minha! Filha minha!"
Sei que não o és. O tempo se desfaz.

Dos tempos que em meus braços
embalavam-te em calma e cantoria,
Nada relata a tua infante memória
pequenina. "Menina! Menina"
Já que do meu sangue não és ínfima,
Por que ainda assim não posso ninar-te?

"Nina! Nina! Catarina!"
Vês em meus olhos lágrima cristalina?
São frutos da semente que plantei,
São cicatrizes das graças que a ti não contei.
Não te incomodes pela dor minha,
Não lacrimejes pela lembrança esquecida.

Catarina, de azulados olhos menina,
Não guardas meu sorriso na tua retina,
Não segues em pranto mudo como eu.
Onde estão as manhãs tão iluminadas,
Onde ficaram as horas tão apressadas,
Daquele tempo onde não conhecia o breu?

"Nina! Menina! Catarina!", onde estou?
O vento não sopra por aqui há anos!
O sol não mais ilumina aqueles cantos,
A lua só adormece com esses prantos,
De tristes sorrisos que escorregaram
pelo tempo, pelo obscuro olhar meu.

"Catarina! Filha minha!" não há nem um
mal em sonhar sonhos que são minha vida.
Vês? Aquelas nuvens nubladas pairando no céu,
Não são sinais de chuva. Não menina, não são.
O que cairá dali serão lágrimas tardias.
Mas não olhes! Deixe-as por ti passar!

"Nina! Catarina!"
Ninar-te-ia eu em eterno pranto.
"Catarina... Nina..."
Menina da lua e do sol.
Seria eterna manhã,
Se fosses filha minha.

Catarina menina.
Nina e ilumina,
O que era sonho meu.
Menina da minha sina!
"Catarina! Nina!"
"Filha minha! Filha minha!"
O sonho acabou...

NOTA

Gostaria de agradecer a todos os seguidores e visitantes por passarem sempre por aqui. É um prazer escrever e ser lido por todos vocês. Ah! Para os amantes do cinema, não esqueçam de visitar o meu blog SÓ CINEMA e a minha coluna no Jornal Tribuna Feirense "EM CARTAZ" que sai todas as terças-feiras!

Um grande abraço!

Wilson Macêdo Jr.

A FOTOGRAFIA E A TARDE (Wilson Macêdo Jr.)




Acorrentam-me os versos dessa poesia esfacelada.
Não culpo o vento por soprar tão frio, vespertino e velado.
Degolam-me artilharias de sinônimos inúteis e fáceis.
Amor e rima calada, nesse festival descompassado.

Tua foto empoeirada na estante de portas rangentes,
Relembra-me o impossível vivido nos meus sonhos.
O grito que não posso dar reverbera minhas entranhas,
E os anjos do alto tecem comentários tão irônicos.

Riam-se superiores e tão solitários seres alados!
Olhem com olhos divinos o meu lento desfalecer.
Meus dedos já não tocam a fotografia de tons amarelados,
Meus olhos marejam ao contemplar esse amargo entardecer.

CONDENADO (Wilson Macêdo Jr.)


Para Gilmário Tanajura


Disseram que choro demais,
Que sorrio de menos,
Que reclamo uma paz,
Que até eu desconheço.

Publicaram que rimo demais,
Que poetizo de menos,
Que mereço a morte,
Por não apreciar sonetos.

SAL E SALIVA (Wilson Macêdo Jr.)



Embriago-me em sal e saliva,
Alimento-me da raiva nociva,
Bebo do veneno que é doce.

Esse veneno encorpado e tinto,
Que engulo, trago e sinto,
Torna-se a essência de mim.

Pateio e despejo no denso ar
Tudo que em mim habita:
As minhas vergonhas distintas.

De requinte são meus dilemas,
De repente me vejo do alto,
De joelhos a dizer que não.

E despeço-me num abraço
Marítimo e tão agridoce.
Sou agora um artefato do mar.

ISABEL (Wilson Macêdo Jr.)

Para Isabel


Isabel.
Teu nome ninguém mais deveria possuir.
Deveria ser registrado, patenteado, gravado,
Deveria ser proibido usá-lo por aí.

Ao chamarem teu nome em local aberto,
Apenas você deveria voltar-se e olhar, e sorrir.
Ninguém mais deveria se chamar Isabel,
Ninguém mais além de ti. Ninguém mais.

E quando as nuvens dançarem lá no céu,
Nada além do teu nome tomará minha visão.
Nas nuvens, leves, alvas e claras como um véu,
Todos lá deverão ler, para sempre, Isabel

A VERDADE (Wilson Macêdo Jr.)



Sou tão reservado,
Que até calado
Me desconheço.

Sou tão torto,
Que nem morto
hei de disfarçar.

Sou tão dissimulado,
Que até abalado
Finjo que não dói.

Sou tão estranho,
Tão resguardado,
Tão infeliz.

VOZES (Wilson Macêdo Jr.)




Você ouvirá duas vozes:
Uma arrastando-se na própria lamúria,
A outra limitando-se a sorrir.

A primeira voz se romperá,
Irá se tornar rouquidão na tarde,
A segunda será altiva e mordaz.

Você ouvirá duas vozes:
Uma será a reprodução da verdade,
A outra se apresentará duvidosa.

A primeira voz irá se esfacelar,
Implorar por amor incondicional.
A segunda dirá um adeus mais que frio.

Tenho boas e más notícias:
A primeira voz será a tua.
A minha será a segunda.