VISITANTES

A AUSÊNCIA DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)




Descansou o copo de wisky na mesa. Olhou para a garrafa e ela já ia pela metade. Hênio chegou a pensar que era tempo perdido, que mais uma vez tinha caído na armadilha de Cristina. “Vou lhe visitar”. Como se fosse verdade. Mas algo desesperador dentro de Hênio dizia que dessa vez podia ser verdade. Meia garrafa. Era um mau sinal. A partir dali o malte desceria goela abaixo como um veneno, era puro malte, era puro veneno. O gelo já se tornava dispensável, ia encarar a espera no seco, com o wisky puro e consolador. Sentia-se ridículo e bêbado, esperando que ao menos o telefone tocasse, que Cristina desse nem que fosse uma desculpa pra lá de esfarrapada. “Você não sabe o que aconteceu”. Não lhe importava o que tinha acontecido. Ela simplesmente não estava ali. E começou a pensar que se ela chegasse naquele exato momento, veria uma cena deplorável, um homem só, com uma garrafa de wisky pela metade, vertendo a primeira lágrima.
Cristina era do tipo que fazia cem promessas e cumpria dez. Dez por cento do que prometia era verdade, e era nessa porcentagem que Hênio se agarrava. Despejou mais uma dose no copo, uma dose generosa, a partir dali não ia mais responder por si. A bebida desceu fervendo, não sabia se era mesmo o wisky ou o ódio que o temperava. “Você anda bebendo demais”. Ela tecia esse tipo de comentário, talvez a fim de feri-lo, de expor o seu ponto fraco. Hênio bateu o copo na mesa de vidro ecoando por toda a sala e levantou-se. Foi até a janela. Nenhum carro que passava ali se parecia com o de Cristina, e quando parecia, sentia sua respiração cessar por alguns segundos. Sentiu-se como um tolo, um amante de primeira viagem, que mal conseguia controlar a sua respiração.
Quando o telefone tocou, o som reverberou muito além da sala, sentiu o seu íntimo vibrar e o impulsionar até o aparelho em uma corrida angustiante. Silêncio. Hênio imaginou que do outro lado da linha estaria Cristina pensando em alguma coisa para dizer, como se estivesse sem coragem. Mas não. Era mesmo silêncio. Não era ninguém. Caminhou até a janela novamente. Cada farol que surgia no fim da rua, Hênio sentia o seu corpo se encher de esperança. “Ela não vem”. Pensava ele com o copo que quase se espatifava na mão pelo ódio que sentia. O seu copo estava vazio e resolveu caminhar até mesa e pôr mais uma dose. Engoliu de uma só vez e sentiu seu corpo aquecer. Olhou para o canto da sala e lá estava o piano preto descansando. “Você toca muito bem”. O comentário de Cristina não passava disso. Tinha a mania de ser monossilábica em tudo. Menos na hora de repreendê-lo. Resolveu esquecer o piano por um tempo e foi para a janela novamente. Olhava fixo para o fim da rua, como um cãozinho que espera o seu dono chegar em casa.
Uma gota de chuva bateu na janela e lhe distraiu. Pensou que se vinha chuva, era mais que certo a ausência de Cristina. E os pingos foram aumentando, engrossando cada vez mais e molhando por completo a janela. Ainda com o copo na mão, apressou o passo até o piano e numa força descomunal o arrastou para próximo da janela. O piano brilhava e tinha aroma de óleo de madeira. Hênio abriu a janela e deixou a chuva entrar. Os pingos encharcavam a madeira do instrumento. Ele levantou a tampa que cobria o teclado e executou uma música triste. O vento que trazia os pingos de chuva molhava o piano, o seu rosto e seu corpo por inteiro. Hênio executava a música enquanto a água escorria pelo seu rosto e pelo piano. Tocava com segurança e raiva, estava pondo o seu ódio nas teclas do instrumento. Hênio parou de tocar e subiu no piano e deitou-se de barriga para cima. Abriu os braços, tomou chuva pesada e sorriu. Os pingos espessos castigavam o seu rosto, ensopava a sua roupa, destruía o instrumento. E foi pensando em Cristina e na sua ausência que Hênio adormeceu na chuva, no piano. Eram um só. E enquanto a água escorria pela sala, Hênio dormiu e esperou nunca mais acordar.

2 comentários:

Bravo! Numa gradação bem articulada
vai-nos conduzindo e nos desesperando à busca de um clímax que parece nunca chegar, para num suspiro, chegarmos e constatarmos: Fantástica imitação da realidade.Eu chamaria real ficção.
Muito bom o teu estilo. Parabéns. Voltarei, outras vezes
Ah, obrigada pela visita ao "Poesias de Otelice Soares".
Um abraço.

 

junior,

Muito interessante seu texto.No decorrer da leitura tive raiva de Cristina e piedade de Hênio.Mergulhei no seu imaginário poético e me senti viajando num universo que somente os amantes da leitura são capazes de vislumbrar.
Parabéns!
Graça Matos