VISITANTES

PICADEIRO (Wilson Macêdo Jr.)





Nos despojos de um dia famigerado,
Chamam-no de acabrunhado palhaço,
Que louco esqueceu-se de sorrir.

Como a máscara poderia ser verdadeira,
Se o palhaço ao olhar para o centro da platéia,
Não vê a face da chance última e derradeira?

E ao pisar na irrealidade daquele espelho,
A máscara cai e uma lágrima fere o picadeiro.
Assim o palhaço segue triste, e mancha a maquiagem.

CALAMIDADE (Wilson Macêdo Jr.)





A minha retina espanta-se ao cabo do dia.
Os espectros de um pôr-dAdicionar vídeoo-sol calado,
Ensurdecem, enlouquecem os velozes pássaros,
E a mim também retardam o raciocínio.

Não tenho asas, de fato sei que não passo
de um calado fantasma sem correntes aos pés,
Um cão sem presas solto no meio do quintal,
Um livre animal, mas preso pelo marasmo.

Sou eu, uma águia muda no fim da tarde,
Um falcão sem garras sobre a presa,
Um leão sem patas, em maio na savana,
Sou eu, alguém sozinho na calamidade.

VERDE-MAR (Wilson Macêdo Jr.)




Eram verde-mar.
E eram esmeraldas, lagos oculares.
Profusas pupilas,
Eram mananciais de clorofila.

E na silhueta do dia primeiro,
As minhas pupilas confusas,
Tentavam desvendar a esmo,
As armadilhas de tal olhar difuso.

Eram verde-mar.
E eram cintilantes, cor de cana.
Lustres de esmeralda e esmero.
Verdes-mar assim eram.

Prisioneiro de imediata sentença,
Escapou-me a voz e o protesto.
Assistia ela em camarote de diamantes,
A minha queda em terra gasta e deserta.

Eram verde-mar.
E tinham a cor das matas imaculadas.
Lânguido olhar distante,
Era o dela que a manhã mostrava.

E na silhueta do dia segundo,
Buscava ávido o meu olhar
Aquele verdor taciturno.
E assim que os viram,
Em um verde límpido se refletiram,
E em um segundo se perderam.

E na silhueta do dia terceiro,
À vontade os olhos se falavam,
Às escondidas se fitavam.
Estavam meus olhos sem rumo.

E no fim do dia terceiro,
Na hora do adeus oculto se calaram.
E no verde-mar dos olhos dela,
Os meus tão singelos se afogaram.

QUARTO SEM JANELAS (Wilson Macêdo Jr.)




Apenas ouço o silêncio que corta a porta.
De guarda estão meus velhos paletós,
Que agora cheiram a antigamente.

Como uma névoa que me arrepia a espinha,
O silêncio vem perturbar uma paz que não tenho.
Agora há cantos proferidos por grilos inquietos.

Tenho os braços cruzados e toco minhas costelas.
Estou em vestes alvas, seguras, paredes acolchoadas,
Não há janelas. Ainda bem! A loucura não pode entrar.

O RETORNO DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)





Hênio presenciou o sol deitar-se no horizonte e encher a sala de um tom alaranjado. Permanecia sentado sobre o piano a contemplar o céu que parecia sangrar, como se aquela paisagem tomasse as dores do seu coração e por compadecimento sagrasse o fim da tarde. Contemplava a morte diária do sol sem subverter o seu propósito. Não derramaria mais nem uma lágrima por Cristina, não por ela, nem tão pouco por mais ninguém. A roupa era a mesma de vinte e quatro horas atrás, o cheiro de álcool no tapete já se tornava insuportável, o álcool de meia garrafa de wisky desperdiçada por Cristina. O céu alaranjado não anunciava chuva, não anunciava nada, era como uma pintura que Hênio gostaria de apreciar para sempre, como uma tela de Monet que ganhava vida.
Deslizou do piano e seus pés tocaram o chão, sentiu-os dormente, passou a mão entre os cabelos e olhou ao redor da sala como se analisasse os estragos que agora nem pareciam tantos e graves. O tapete já não estava encharcado, apenas úmido e pegajoso, o que lhe causava certa repulsa. Repulsa pelo ato impensado que cometera, por ter estragado meia garrafa de wisky, ensopado o tapete e posto em risco o seu piano. E tudo por Cristina, que à essa hora estaria às gargalhadas por ele mesmo ter feito o serviço sujo: acabar com o relacionamento. “A culpa foi toda sua!”. Claro, o que mais Cristina poderia dizer? Apenas acusá-lo, pôr uma faca em seu pescoço até ele confessar que tudo era culpa dele, que ele não a amava mais e assim inverter a situação. Cristina era maquiavélica, astuta, sabia como inverter tudo e tirar a culpa dos próprios ombros. “Eu disse que te amava!”. Seria uma outra arma que usaria, o esquecimento patológico de Hênio. Boa saída. E como se revisitasse Dom Casmurro, sentiu em Cristina uma ponta de Capitu, uma leve dissimulação, mas sem olhos de ressaca, apenas um vazio, um olhar ofídico. Serpente de pedigree humano, uma criatura híbrida, meio humana, meio não se sabe o quê. Talvez fosse extraterrena, ou até um cyborg. Hênio chegou a rir de todos esses pensamentos infundados, mas com uma ponta de realidade. Cristina. Um ser misterioso e encantador. Há vinte e quatro horas atrás Hênio teria tantos adjetivos para nominá-la que mal caberiam em um romance. Agora o adjetivo caberia em apenas um rabisco na areia. Misteriosa.
Jogou seu corpo no sofá, afundou-se na maciez do estofado e sorriu. E como numa resposta involuntária, seu corpo desobedecia às ordens previamente estabelecidas e seus olhos foram umedecendo, uma resposta imediata. Chorou. Pensava tudo aquilo de Cristina, mas na primeira lágrima vertida viu que não podia viver sem ela, sem aquele olhar meio Capitu, meio cobra coral. Amava aqueles olhos sem vida, a rispidez característica da sua fala. Amava o seu sorriso acima de tudo. De cabeça baixa assistia suas lágrimas gotejarem em sua roupa e levar ao chão a idéia, que agora parecia estúpida, de abandonar Cristina e dizer a adeus a todos os seus defeitos. O choro veio num crescente, agora era tarde, chorava por ela novamente. Decidiu que nada acabaria ali, não deixaria Cristina escapar pelos seus dedos e partir para sempre. E como se o sol se compadecesse de sua dor, pareceu ficar imóvel. A sala continuava alaranjada. O sol iria esperar por aquele desfecho a la Casablanca, a la Bougart e Bergman.
Hênio pulou do sofá, pegou suas chaves e partiu para o carro. Saiu em disparada dirigindo incautamente, não respeitou semáforos, não respeitou velocidade, só queria encontrar Cristina novamente. Estava cego e em alta velocidade, não queria perder o pôr-do-sol, queria contemplá-lo ao lado de sua Capitu, de sua imperfeita Julieta. As coisas passavam por ele tão rapidamente que mais pareciam vertigens, era um homem desesperado. Estacionou em frente ao prédio onde Cristina morava e apertou o interfone milhares de vezes. Pensou que talvez ela não quisesse vê-lo nunca mais, e talvez não estivesse de todo errada. Sem resposta. Até o sol parecia desistir daquela cruzada romântica, daquele último ato de desespero e parecia voltar a morrer. Hênio olhou para o mar que ficava em frente ao prédio de Cristina, o sol começava a perder suas forças e ele atravessou a avenida em direção à praia. Sentou-se na areia e ficou ali. Olhou para trás na esperança de ver Cristina na sacada do apartamento. Não havia nada. Com as pernas encolhidas e presas pelos braços Hênio abaixou a cabeça, pois não queria ver o sol desistir de tudo também. Seu pensamento estava longe, estava em busca de Cristina. Sentiu uma mão tocar o seu ombro e aquele toque não era desconhecido. Aquele perfume adocicado que sempre fez parte de sua vida lhe devolveu a consciência e levantou a cabeça. Ao seu lado estava ela, Cristina, bela como sempre, com o sorriso de sempre, ajoelhada ao seu lado. Não disseram nada, apenas beijaram-se dando uma trégua ao sol que já não podia mais esperar por aquele momento.
O mais improvável tinha acontecido, Hênio viu brotar do silêncio lágrimas nos olhos de Cristina e as enxugou com um sorriso no rosto. Hênio trouxe o corpo de Cristina para junto do seu e ficaram lado a lado, olhando para o horizonte assistindo ao adormecer do sol. Hênio fincou o dedo indicador na areia e ali escreveu a palavra “misteriosa”. E o sol se pôs.