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A PRESENÇA DE CRISTINA (Wilson Macêdo Jr.)




A chave girou na porta. A luz do sol nascente invadiu a sala. Cristina bateu a porta na esperança que Hênio aparecesse. Ficou impaciente, balançava a chave na mão e resolveu avançar pela sala adentro. Olhou para o lado direito, a cena era paralisante. O tapete e o chão da sala estavam encharcados, o piano, que ainda pingava água, estava próximo à janela, e por fim aquele corpo adormecido em cima da tampa, igualmente encharcado. Cristina apertou o passo até Hênio e o observou estupefata. Hênio dormia. Teve a confirmação ao notar a sua respiração que movimentava o tórax para dentro e para fora.
- Hênio?
Cristina balançou o corpo de Hênio. Ele se mexeu, ela sentiu um alívio e resmungou alguma coisa tão baixo que talvez nem ela pudesse entender. Vendo que Hênio acordava, Cristina largou a bolsa em cima do sofá e começou a apanhar a garrafa de wisky que estava virada. A água misturada à bebida deixava um odor estranho no tapete. Apanhou o copo e foi para a cozinha. Jogou a garrafa vazia no lixo e pôs o copo dentro da pia. Hênio esfregava os olhos, parecia atordoado, olhou tudo ao redor e pensou que a voz que ouvira fora de um sonho. E como um milagre Cristina materializou-se na sala. Hênio esfregou os olhos mais uma vez para ter certeza de que não era uma miragem. Cristina foi até o sofá onde se encontrava a sua bolsa e lá dentro apanhou um batom e começou a passar nos lábios.
- Uma garrafa inteira?
- Meia.
Ela fechou o batom e colocou de volta na bolsa.
- Então a outra metade encharcou o tapete. Foi um presente meu.
- Eu sinto muito.
- Eu não pude vir.
- Eu percebi.
- Tive uma reunião de última hora e...
- Você não precisa se explicar Cristina.
Hênio se sentia ultrajado com aquela conversa de “reunião de última hora”. Um telefonema teria sido o bastante para Hênio se conformar.
- Às vezes eu fico achando que você pensa que eu não estou nem aí pra você...
- E está?
- É tudo muito complicado.
Hênio sorriu. “Complicado”, a palavra preferida de Cristina. Ou melhor, gostava dessa palavra no infinitivo: complicar.
- Você não vai descer desse piano? Aliás, eu não acredito que você abriu a janela para molhar o piano, a sala e até você. Vai acabar resfriado.
Era esse tipo de comentário feito por Cristina que deixava Hênio com vontade de explodir. “Vai acabar resfriado”, como se ela se importasse se ele pegasse um resfriado, uma tuberculose ou fosse lá que doença fosse.
- Eu estou bem aqui.
- É melhor você tirar essa roupa se não...
- Para com isso! Para de fingir que se preocupa comigo! É isso que me irrita em você, essa sua mania de fingir que se preocupa comigo!
- Você ainda está bêbado...
- Talvez!
- Vai dizer o quê? Que é culpa minha se você encheu a cara com meia garrafa de wisky? Ou se um dia essa merda de piano apodrecer por causa da chuva que você deixou entrar?! É isso que me irrita em você Hênio, parece que você vive em uma peça de tragédia grega!
Cristina levantou-se do sofá e apanhou a bolsa. Hênio pulou do piano e a agarrou pelos pulsos.
- Você não entende não é?
- O quê?! O que é que eu não entendo?!
- Esquece. Se você ainda não leu nos meus olhos, nos meus gestos... então você é mesmo como eu pensei que fosse.
- O que você pensou que eu fosse? Fala Hênio!
- Essa pessoa seca. Árida. Vai embora Cristina.
- Você está mandando eu ir embora Hênio?
Hênio pensou por três segundos.
- Estou. O que você espera? Que eu faça uma cena de tragédia grega? Não dessa vez. Eu amo você, não resta dúvidas. Agora vai embora.
Cristina deu as costas. Ao ouvir a batida da porta Hênio fechou os olhos. Sentia alívio, sentia medo. Cristina era tudo que lhe importava nesse mundo, mas não estava mais disposto a se humilhar, a ser rejeitado. Se tinha sido muito duro agora não valia à pena pensar naquilo. Sentia tanto amor por Cristina que lhe doía o corpo todo, doía falar com ela naquele tom, daquela maneira. Não era do seu feitio agir daquela forma, mas algo dentro dele falou mais alto naqueles minutos de discussão. Cristina partira, e se perguntou o que mudaria dali pra frente. Voltou para cima do piano e sentou-se. E decidiu ficar ali até o pôr do sol.

2 comentários:

Voltei aqui para agradecer a sua presença como seguidor do Poesias de Otelice Soares. Causou-me alegria constatar lá a tua presença.mas, ao voltar, com quem me deparo? Cristina... deixando Henio outra vez na solidão.
êta cristina danada!
Um abraço querido e parabéns, mais uma vez.

 

Olá Junior,
Amei a sua história.
Um recadinho para Hênio: "Soldado morto, farda noutro"!

Parabéns!

Graça Matos
www.inquietalitera.blogspot.com